Há muito tempo fazem parte da história da humanidade os atos de ocultar ou dissimular a natureza ilícita de dinheiro ou bens. Parcela dos estudiosos ensina que esconder a origem criminosa de valores é tão antigo quanto a circulação de capitais pelo mundo; a obtenção de valores de procedência ilícita acabou levando à mascaração de tais recursos. Outra parte da doutrina afirma que ocorreu por volta do século 17, com a prática da pirataria.
Já a expressão lavagem de capitais surgiu apenas entre os anos de 1920 e 1930, tendo sua origem atrelada à máfia atuante nos EUA, especialmente na cidade de Chicago, onde o mafioso ítalo-americano conhecido como Al Capone se valeu de uma rede de lavanderia espalhada por todo país, e que atuava no sistema de cash only (somente aceitava dinheiro) para conferir aparência lícita ao dinheiro proveniente do tráfico de drogas e de bebidas.
Vale registrar que alguns países europeus, como Espanha e Portugal, adotam a expressão branqueamento de capitais, mas esse termo foi expressamente rechaçado pelo legislador brasileiro na exposição de motivos da Lei 9.613/98 devido à sua possível conotação racista.
A lavagem de dinheiro ou de capitais pode ser definida como:
a conduta pela qual se busca ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição ou movimentação de ativos provenientes da prática de uma infração penal, tendo por finalidade sua futura reinserção na economia formal, revestida de aparência de licitude. Em síntese, a lavagem de dinheiro objetiva a transformação de valores financeiros, maculados desde o nascedouro por sua origem criminosa, em recursos que possam ser apresentados como algo aparentemente legal.
Percebe-se que o processo de lavagem de capitais tem como característica essencial a existência de uma infração penal antecedente que seja de natureza produtora, vale dizer, com aptidão para gerar bens, direitos e valores passíveis de mascaramento.
Um aspecto polêmico e recente envolvendo o crime de lavagem de dinheiro merece atenção. Com a crescente complexidade dos instrumentos utilizados pelos criminosos para lavar capitais, não raras vezes passaram a empregar manobras para dissimular a origem criminosa dos valores ilícitos no próprio momento do recebimento do recurso proveniente de crime. Basta imaginar que é possível para o agente receber o dinheiro sujo oriundo de delito de corrupção passiva já com aparência de licitude (seja em conta no exterior, ou em conta de laranja no Brasil, por exemplo). A celeuma que surge é justamente saber se esse cenário caracteriza somente o crime de corrupção passiva, ou se existe concurso dos crimes de corrupção passiva e lavagem de capitais.
De acordo com as lições de Sergio Moro:
a propina já chega ao destinatário, o agente público ou terceiro beneficiário, ocultada e, por vezes, já em local seguro e fora do alcance das autoridades públicas, tornando desnecessária qualquer nova conduta de ocultação ou dissimulação. Não seria justificável premiar o criminoso por sua maior sofisticação e ardil, ou seja, por sua habilidade em tornar desnecessária ulterior ocultação e dissimulação do produto do crime, já que estes valores já lhe são concomitantemente repassados com a aparência de licitude ou para receptáculo secreto.
O ex-juiz federal entendeu, no âmbito da denominada operação “lava jato”, pela existência não apenas de corrupção passiva, mas também de lavagem de dinheiro concomitante, na hipótese em que o pagamento da propina é feito por meio de transações internacionais sub-reptícias, chegando ao destinatário já ocultado e, não raro, com aparência lícita.
Esse entendimento, contudo, é criticado por parcela da doutrina, que sustenta que o crime de lavagem de dinheiro exige uma infração penal antecedente e não simultânea; argumentando ainda que a forma de pagamento da vantagem indevida seria comportamento diferente dos atos de ocultação e dissimulação, característicos da lavagem de capitais. Seguindo essa linha de raciocínio, no crime de corrupção ativa a vantagem ilícita pode ser solicitada direta ou indiretamente, ou seja, por meio de interpostas pessoas, físicas ou jurídicas, razão pela qual não seria possível o concurso entre esta infração penal e o crime de lavagem de dinheiro.
Assim, nos crimes de corrupção, o produto só existe para o corrompido a partir do momento em que ele passa a dispor dos valores, seja diretamente, seja por intermediários. Antes disso, qualquer procedimento de mascaramento do capital, modificação de seus aspectos, ou traslado, estão fora de seu domínio. Ele é estranho ao curso do dinheiro antes deste chegar às suas mãos, ou nas de alguém ou de uma estrutura que o represente formal ou informalmente. O recebimento de valores será ato típico de corrupção passiva, mas o processo que o antecede não se adequa ao tipo de lavagem de dinheiro — ao menos na perspectiva do destinatário.
Discordamos dos dois posicionamentos expostos.
De maneira ilustrativa, tome-se em consideração o crime do artigo 317 do Código Penal, que pune as condutas de solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou mesmo antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou, ainda, aceitar promessa de tal vantagem. Como se pode perceber, trata-se de um tipo penal misto alternativo ou crime de ação múltipla, no qual a prática de duas ou mais condutas em um mesmo contexto fático não dará ensejo ao concurso de crimes. Dizendo de outro modo, o agente público que solicita vantagem indevida e, após, efetivamente a recebe, pratica um único crime de corrupção passiva, sendo a primeira conduta suficiente para a caracterização do delito, e a última mero exaurimento do crime.
Como se nota, o crime de corrupção passiva (assim como o delito de concussão) é de natureza formal, ou seja, consuma-se no momento em que o funcionário público solicita, recebe, ou aceita promessa de vantagem indevida. Isso significa que as posteriores transações (nacionais ou internacionais) sub-reptícias são mero exaurimento do delito antecedente à lavagem de capitais. Justamente por isso, caracterizam sim o crime de lavagem de dinheiro.
Todavia, não nos parece correto falar em lavagem concomitante ou simultânea. Considerando o caráter formal do delito hospedado no art. 317 do CP, na hipótese em que o agente solicita a vantagem indevida o crime já se consuma, sendo o efetivo pagamento da propina irrelevante para sua configuração. Desse modo, se houver o posterior recebimento da vantagem indevida, e ocorrer de forma mascarada (por meio de artifícios que dissimulam ou ocultam a sua procedência ilícita), caracteriza-se também o crime tipificado no art. 1º da Lei 9.613/98, praticado de forma ulterior (e não concomitante) ao delito antecedente. A infração penal antecedente (corrupção ativa), já consumada, é seguida do efetivo pagamento da propina de forma dissimulada (lavagem de dinheiro).
As condutas ocorrem em momentos distintos, violando bens jurídicos diferentes, acarretando infrações penais diversas, com diferentes momentos consumativos. Enquanto a corrupção ativa se consuma com a solicitação da vantagem indevida, o crime de lavagem de capitais se consuma com a prática do primeiro ato de ocultação ou dissimulação, no caso, com o efetivo pagamento da propina de forma sub-reptícia.
Não se pode fechar os olhos para a forma com que se concretiza o recebimento da vantagem. Ora, o agente público poderia perfeitamente receber os valores ilícitos diretamente em dinheiro, em conta bancária de sua titularidade ou na forma de um bem registrado em seu nome. Entretanto, se resolve receber a vantagem de modo mascarado, com o claro objetivo de afastar sua origem criminosa, impossível não reconhecer o crime de lavagem.
Assim agindo, o criminoso:
opta por empregar mecanismos que, aos seus olhos, é mais eficiente justamente porque dissimula seus verdadeiros desígnios, escondendo a natureza e a origem criminosa que maculava o recurso que lhe era destinado. Por tal razão, não poderia simplesmente responder pela prática exclusiva do crime antecedente, merecendo reprimenda também pelo tipo penal de lavagem de dinheiro.
Frise-se, aliás, que para que se caracterize o concurso entre tais infrações penais nem sequer seria necessária sofisticação no recebimento da propina, por exemplo em conta bancária no exterior; o simples depósito no Brasil em conta corrente de um laranja já retrataria o mesmo cenário criminoso. Sublinhe-se que os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro tutelam bens jurídicos distintos: probidade da Administração Pública e a ordem socioeconômica.
Nas situações retratadas, o pagamento do agente corrupto se dá de forma autônoma e dissimulada, afastando os valores do ato criminoso anteriormente praticado (solicitar vantagem indevida). Ademais, vale lembrar que tanto na corrupção como na concussão o autor pode nem sequer dispor dos valores solicitados ou exigidos, e ainda assim os crimes estarão caracterizados e não perderão sua natureza produtora, afinal, esse tipo de infração precisa ter aptidão (potencial) para gerar bens, direitos e valores a serem mascarados.
É claro que, se o agente não recebe os valores, não haverá o objeto material da lavagem, o que obsta o concurso de crimes. Porém, se a propina é recebida de forma dissimulada e em um contexto distinto da solicitação anteriormente realizada pelo agente público, trata-se de um caso típico de concurso material.
Insistimos: na corrupção passiva, o delito se consuma com a mera solicitação. Ao punir a conduta de receber, o legislador procurou abranger as hipóteses em que o agente não solicita, mas simplesmente recebe os valores a título de propina. Destarte, existe o crime se ele solicita, mas não recebe; bem como se recebe, mas nada solicita.
Sem embargo, para se concluir pelo concurso entre a corrupção e a lavagem é imprescindível a análise contextual dos fatos, não sendo solução para todo e qualquer caso. Se o agente solicita propina e a recebe no mesmo contexto, sem qualquer dissimulação da sua origem espúria, não há o concurso de crimes, restando apenas o crime descrito no art. 317 do CP. No entanto, se o agente solicita a propina, mas o recebimento dos valores se dá em um contexto fático distinto, por meio de uma operação que tenha a finalidade de ocultar sua procedência criminosa, existe o concurso de infrações penais.
Por isso mesmo o Supremo Tribunal Federal, muito embora já tenha reconhecido como mero exaurimento o recebimento dissimulado de recursos oriundos de crime, entende que é preciso analisar o caso concreto para concluir pelo crime único exaurido ou pelo concurso do delito antecedente com a lavagem de capitais:
Inexistência de jurisprudência consolidada. (…) Argumento de que o recebimento dissimulado e mediante artifícios constitui exaurimento do delito de corrupção passiva – e não crime autônomo de lavagem de dinheiro, tal como decidido na AP 470 (…). Embora tal entendimento tenha sido bem empregado no referido precedente, não se pode, desde logo, dar-lhe o mesmo efeito para afirmar a atipicidade das condutas narradas (…) na denúncia que ora se examina.
Conclui-se que nada impede o concurso entre os crimes de corrupção passiva/concussão e lavagem de capitais, quando o recebimento dos valores ocorrer de forma dissimulada e em contexto fático diferente da solicitação ou da exigência feita pelo agente, muito embora não seja tecnicamente correto falar em lavagem de dinheiro simultânea ou concomitante.
CARDOSO, Francisco de Assis Machado. Lavagem de dinheiro – Lei nº 9.613/98. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó. (Org). Leis penais especiais comentadas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1298.
BLANCO CORDERO, Isidoro. El delito de blanqueo de capitales. Espanha: Thomson Reuters Aranzadi, 2015, p. 98.
CARDOSO, Francisco de Assis Machado. Lavagem de dinheiro – Lei nº 9.613/98. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó. (Org). Leis penais especiais comentadas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1296.
Ação penal 5054932-88.2016.4.04.7000/PR, 13ª Vara Federal de Curitiba, DJ 30/03/2017.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 126-127.
CARDOSO, Francisco de Assis Machado. Lavagem de dinheiro – Lei nº 9.613/98. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó. (Org). Leis penais especiais comentadas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1337.
Em sede doutrinária existe intensa discussão sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem, prevalecendo o entendimento de que o tipo penal tutela a ordem econômico-financeira. Nesse sentido: LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Especial Criminal Comentada. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 601. Em sentido diverso, sustentando que o objeto jurídico é a Administração da Justiça[7] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.85.
STF, Inq 3.997, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 21/06/2016.