A Constituição Federal, a par de registrar a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos (artigo 1º) e estabelecer o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, caput), fez registrar que as mulheres constituem um dos grupos sociais que mereceriam especial atenção do Estado. No âmbito infraconstitucional, essa especial proteção foi veiculada pela Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha.
A norma inaugura entre nós um microssistema de proteção às mulheres. Sim, às mulheres, no plural, porque embora estejamos todas submetidas ao machismo estrutural, as vulnerabilidades variam. A realidade da mulher negra e periférica difere sobremaneira daquela da mulher branca com nível superior de escolaridade, por exemplo. A seu turno, os desafios enfrentados pelas mulheres heterossexuais e pelas gays também lhes são próprios. O microssistema volta-se, então, à proteção das mulheres enquanto gênero.
A Lei Maria da Penha funda-se não na biologia, mas no caráter sociológico de gênero, o que se evidencia quando seu artigo 5º, ao conceituar violência, utiliza a expressão “qualquer ação ou omissão baseada no gênero“.
Gênero é uma construção cultural ligada a papéis sociais atribuídos a homens e mulheres que incluem comportamento, educação, e até profissões que a sociedade impõe e espera que sejam cumpridos por homens e mulheres.
A violência de gênero é aquela que decorre de um poder de dominação do homem e da submissão da mulher. Envolve a determinação social dos papéis masculino e feminino e do caráter discriminatório dela decorrente. A violência de gênero reflete o ódio, o desprezo e o fato de que a sociedade vê o feminino como inferior ao masculino.
Mas é importante salientar que gênero não se confunde com sexo biológico, relacionando-se, isso, sim, com a identidade da pessoa. Assim, transgênero é a pessoa cujo gênero não coincide com seu sexo biológico. A mulher trangênero, embora geneticamente carregue traços masculinos, sente-se mulher, comporta-se conforme a sociedade entende que uma mulher deva se comportar.
Elas também estão sob o manto de proteção da Lei Maria da Penha. Isso porque, na nossa sociedade, cultural e historicamente, sempre se atribuiu maior importância aos papéis desempenhados pelos homens. Há uma construção hierárquica na sociedade em que o feminino ocupa uma posição inferior, de menor validade. Esse quadro de naturalização da hierarquia faz com que o homem se sinta legitimado a usar da violência para subjugar corpos feminilizados, o que abrange não apenas as pessoas que são biologicamente mulheres (cisgênero), mas também as mulheres transgênero. A violência doméstica e familiar contra as mulheres é democrática.
A mulher transgênero, ainda que carregue em sua estrutura genética cromossomos masculinos, é também submetida a violências de gênero. Não se sustentam eventuais argumentos desavisados no sentido de que não haveria, entre ela e o seu agressor, diferença de compleição física a justificar a especial proteção. A violência baseada no gênero não decorre da superioridade de força física do homem. Ela decorre da posição de superioridade que o homem ocupa em nossa estrutura social. Gênero traduz hierarquia, insista-se.
Entendemos que a Lei Maria da Penha deve receber interpretação extensiva quando fala, no artigo 2º, que se destina às mulheres independentemente de sua orientação sexual. Com vistas a aclarar essa concepção, tramita no Congresso Nacional projeto de lei que visa a ampliar a redação do dispositivo. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, em maio de 2019, em caráter terminativo, o Projeto de Lei nº 191/2017, que altera a redação desse artigo para incluir expressamente, entre os valores protegidos pela Lei Maria da Penha, também a identidade de gênero como forma de atender aos indivíduos transgêneros identificados com o sexo feminino.
No Poder Judiciário, a tese também vem ganhando força em decisões recentes. A título de exemplo, citamos a primeira medida protetiva de urgência deferida em favor de uma mulher trans, no Estado do Paraná, em abril de 2019, e o reconhecimento, em segunda instância, de tal possibilidade pela Justiça do Distrito Federal no ano anterior.
Outro não poderia ser o entendimento, na medida em que a própria Lei Maria da Penha determina, em seu artigo 4º, que em sua interpretação “serão considerados os fins sociais a eu ela se destina”, ou seja, a proteção à condição feminina.
Vale aqui ponderar que a incidência da norma à mulher transgênero não demanda que ela tenha se submetido a cirurgia de adequação genital ou que tenha alterado seus registros civis. Basta que assuma o gênero feminino, que se comporte como pessoa do gênero feminino para ser amparada pela Lei Maria da Penha.
Exigir a submissão a intervenção cirúrgica ou alteração de registro civil feriria não apenas a razoabilidade, mas também e, principalmente, o princípio da dignidade da pessoa humana. O STF já teve oportunidade de se manifestar no sentido de ser “essencial ressaltar que não são os procedimentos médicos que conferem ao indivíduo direito ao reconhecimento de sua condição pessoal. Trata-se de direito indissociável de cláusula geral da dignidade da pessoa humana, que tutela de forma integral e unitária a existência humana” (voto do ministro Lewandoviski na ADI 4275/DF).
Parece-nos, pois, claro que a Lei Maria da Penha foi omissa ao não prever sua aplicação às mulheres transgênero, omissão que demanda interpretação extensiva. Nesse sentido, confiram-se os Enunciados nº 46 do Fonavid (“A lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5o, da Lei 11.340/2006”) e nº 30 da I Reunião Ordinária do GNDH (“A Lei Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou sexo no documento civil”).
Por fim, sendo as duas autoras deste artigo delegadas, inafastável o questionamento acerca do papel da autoridade policial no enfrentamento à vitimização da mulher transgênero. Na realidade do nosso sistema de persecução penal, grupos minoritários só têm acesso à Justiça, na condição de vítimas, passando por uma delegacia de polícia.
Assim é que a Lei Maria da Penha, a par de dedicar especificamente um de seus capítulos ao atendimento das mulheres em sede policial, estabelece que as medidas protetivas de urgência serão deferidas judicialmente a requerimento do Ministério Público ou pedido da ofendida (artigo 19). Esse pedido da ofendida veicula-se por intermédio da autoridade policial. Na prática, as mulheres procuram a delegacia de polícia narrando as violências a que estão submetidas e a autoridade policial determina o encaminhamento de seu pleito de medida protetiva ao Poder Judiciário, devendo fazê-lo em até 48 horas (artigo 12, III).
A Lei Maria da Penha ainda prevê, excepcionalmente, que a autoridade policial, verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, determine o imediato afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida (artigo 12-C, II).
Caso a mulher transgênero se depare com uma autoridade policial pouco consciente da abrangência da Lei Maria da Penha, é plausível que ela será alijada da proteção que a norma lhe garante não só em termos de medidas protetivas de urgência, mas também no que tange ao atendimento especializado voltado à não revitimização.
Dessarte, conclui-se que a Lei Maria da Penha abrange o gênero feminino, aí incluindo-se as mulheres transgênero independentemente da realização de cirurgia de adequação de gênero ou de alteração do nome nos registros civis, conhecimento que deve ser acessível a todas as autoridades policiais do nosso país (quiçá por orientações das corregedorias locais ou sumulado), com vistas a evitar que os direitos fundamentais das mulheres sejam violados agora não pelos seus agressores, mas pelo próprio Estado.