Por Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin
No último final de semana, mais precisamente no sábado (7/8), a Lei 11340/06 completou 15 anos de vigência. Esta, que talvez seja uma das leis mais conhecidas dos brasileiros em geral, representou e representa consideráveis avanços no enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil.
Não obstante, ainda há muitas incompreensões a respeito dessa que é considerada uma das melhores leis do mundo no que se refere à violência contra as mulheres. Um constante equívoco é considerar a Lei Maria da Penha uma norma punitivista. Não, a Lei 11340/06 não é uma norma punitivista! Trata-se, em verdade, de um microssistema de proteção às mulheres que, em sua redação original, nem sequer previa crimes (o que só passou a fazer em 2018, com a inclusão, em seu texto, do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência — artigo 24-A, único crime veiculado na lei).
A Lei Maria da Penha prevê, de forma exemplificativa, cinco tipos de violências a que uma mulher pode ser submetida, cabendo ao aplicador da norma buscar, na legislação penal, um tipo a que os fatos se acoplem (subsunção). Assim, a título de exemplo, quando uma mulher é agredida fisicamente em um relacionamento íntimo de afeto, vislumbra-se a prática do crime de lesões corporais, isto é, artigo 129, §9º, do CP, c.c. artigo 7º, I, da Lei nº 11.340/2006.
Como mencionado, a Lei Maria da Penha prevê exemplificativamente cinco sortes de violências: física, moral, patrimonial, sexual e psicológica, esta definida nos seguintes termos:
“Lei 11340/06:
Artigo 7º — São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
Até aqui, havia certo déficit normativo, na medida em que o ordenamento jurídico não veiculava crimes que pudessem ser associados diretamente à violência prevista no artigo 7º, II, da Lei Maria da Penha.
A par da possibilidade de configuração do crime de lesão corporal por ofensa à saúde (conforme defendemos aqui), ficavam impunes condutas que causassem às mulheres dano emocional, diminuição da autoestima, prejuízo ou perturbação ao pleno desenvolvimento ou ainda degradação ou controle de suas ações, comportamentos, crenças e decisões. A ausência de tipo penal correspondente a tais atitudes era patente, a despeito da gravidade da violência psicológica.
Esse cenário foi recentemente alterado pela bem-vinda criação de dois tipos penais: os artigos 147-A e 147-B do Código Penal. Ambos inseridos no tópico dos crimes contra a liberdade pessoal, relacionam-se inquestionavelmente à violência psicológica (o segundo, inclusive, recebeu esse nomem iuris). Observe-se:
Código Penal
Perseguição:
“Artigo 147-A — Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021).
Pena — reclusão, de seis meses a dois anos, e multa (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021).
§1º. A pena é aumentada de metade se o crime é cometido (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021):
I — contra criança, adolescente ou idoso; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021);
II — contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do artigo 121 deste Código; (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021);
III — mediante concurso de duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021).
§2º. As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021);
§3º. Somente se procede mediante representação. (Incluído pela Lei nº 14.132, de 2021)“.
Violência psicológica contra a mulher (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021):
“Artigo 147-B — Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021).
Pena – reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave (Incluído pela Lei nº 14.188, de 2021)”.
É perceptível que a “soma” dos dois dispositivos acaba por abranger integralmente a descrição da violência psicológica da Lei Maria da Penha (acima transcrita), sendo adequado afirmar que o ordenamento jurídico conta, agora, com crimes específicos relacionados a essa forma de violência.
O crime de violência psicológica contra a mulher será atribuído a quem causar dano emocional “que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que tenha o intuito de degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”. O fato pode se dar por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. O texto é bastante similar à definição trazida pelo artigo 7º, II, da Lei 11340/06.
Saliente-se ainda que ambos os tipos penais foram inseridos no artigo 147 que tipifica o crime de ameaça, exatamente pelas semelhanças que guardam com este. Em todos tutela-se a liberdade psíquica, a integridade psicológica.
As inovações legislativas vieram em boa hora. Não se pretende aqui cair na armadilha populista de acreditar que a mera tipificação de fatos tem o condão de evitar que eles ocorram. No entanto, o valor simbólico da criminalização de tais condutas é incontestável. Tão ruim quanto os excessos punitivistas é a proteção insuficiente de bens jurídicos, fato esse que ocorria em relação à violência psicológica.
Fato é que cada vez mais tem-se reconhecido a importância da atenção à integridade da pessoa como um todo, tal qual previsto no conceito de saúde trazido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que, para além da integridade física, tutela o estado completo de bem-estar físico, mental e social.
Ademais, a violência contra as mulheres tem forte viés social, sendo bastante prudente a criminalização que, no mínimo, lança luz sobre atitudes muitas vezes naturalizadas nos relacionamentos íntimos, como ciúmes excessivos e controle constante da parceira.
Vale lembrar que a violência contra as mulheres é cíclica e tende a se intensificar a cada episódio (já falamos sobre ciclo da violência aqui).
Ao ser reconhecida como vítima de um crime de violência psicológica (por si mesma, pela sociedade e pelo próprio sistema de persecução penal), a mulher em um relacionamento abusivo pode encontrar amparo e condições para rompê-lo, evitando, assim, males maiores, como um feminicídio ou sequelas graves.
Importante ainda pontuar que a Lei nº 14.188/2021, além de incluir no Código Penal o crime do artigo 147-B, que será atribuído a quem causar dano emocional “que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões”, também alterou a Lei 11340/06 para constar expressamente que não apenas o risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher ensejam o afastamento da pessoa agressora do lar comum, podendo a medida ser deferida com fundamento no risco à integridade psicológica da vítima. Amplia-se, assim, ainda mais a proteção da mulher face à violência psicológica.
Dessa forma, ainda que bastante atrasada, a criação das figuras dos artigos 147-A e 147-B do Código Penal é pertinente e desejável, sendo agora importante que os operadores do Direito manejem adequadamente tais dispositivos legais, a fim de que eventuais entraves na comprovação dos danos à saúde mental (psicológica) da mulher não impeçam a aplicação da lei.