Por Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin
Extraído originalmente de: https://www.conjur.com.br/2021-set-24/questao-genero-violencia-patrimonial-mulheres-escusas-absolutorias
A coluna Questão de Gênero, que estreia nesta semana, tem o intuito de abordar temas que envolvem o Direito e a violência contra pessoas em situação de vulnerabilidade, em especial violência de gênero, sob a perspectiva de duas delegadas de polícia que atuam em unidades especializadas.
Como já tivemos oportunidade de alertar, não se trata a Lei Maria da Penha de uma norma punitivista, sendo, em verdade, um microssistema de proteção ao direito das mulheres que prevê, exemplificativamente, cinco tipos de violência.
Uma das formas mais corriqueiras dessa violência é a patrimonial, que advém da histórica relação de desvantagem econômica da mulher em relação ao homem e é definida pela Lei Maria da Penha como sendo “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. A violência patrimonial encontra os tipos penais a ela relacionados no Título II da Parte Especial do Código Penal (“Dos Crimes contra o Patrimônio”): furtos, apropriação indébita, roubos, extorsões, entre outros.
O Código Penal, nesse mesmo título, previu as denominadas escusas absolutórias (artigos 181 e 182). E aqui surge um aparente conflito de normas entre o Código Penal e a Lei nº 11.340/06.
Prevê o Código Penal que será isento de pena aquele que cometer o crime patrimonial em prejuízo de: a) cônjuge, na constância da sociedade conjugal; ou contra b) ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural, desde que não sejam cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa. Tem-se aqui as hipóteses de imunidades absolutas.
É ainda prevista a possibilidade de condicionar a persecução penal ao interesse da vítima (representação criminal) nos casos em que o crime patrimonial for cometido em detrimento do patrimônio de cônjuge separado judicialmente, de irmão ou de tio ou sobrinho com quem o agente coabita. São hipóteses de imunidade relativa que também exigem que o crime não seja cometido com grave ameaça ou mediante violência contra a pessoa.
Perceba-se que, por um lado, a Lei Maria da Penha determina a punição de quem comete crimes patrimoniais contra as mulheres em situação de violência doméstica e familiar, mas, por outro, o Código Penal prevê variadas hipóteses em que esses crimes restariam impunes. A dúvida que permeia este artigo é saber qual sistema aplicar, diante do aparente conflito.
Não há entendimento pacífico no que diz respeito a esse tema. É possível defender que, em se aplicando as escusas absolutórias, crimes contra o patrimônio praticados no âmbito doméstico e familiar ficariam sem punição e a mulher ficaria desprotegida. Nesse sentido, ao se aplicar as escusas absolutórias aos crimes praticados no âmbito da violência doméstica, estaria sendo ferida a especialidade da Lei Maria da Penha e a Convenção do Belém do Pará, esta última com status supralegal após controle de convencionalidade.
Maria Berenice Dias defende que “a partir da nova definição de violência doméstica, que reconhece como tal também a violência patrimonial, não se aplicam as imunidades absolutas ou relativas dos artigos 181 e 182 do Código Penal quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar”. A jurista cita, inclusive, o Estatuto do Idoso, que “além de dispensar a representação, expressamente prevê a não aplicação desta causa de isenção de pena quando a vítima tiver mais de 60 anos” [1].
Com o devido respeito (e até reverência) que dedicamos à autora, nosso pensamento é exatamente oposto ao por ela abraçado. Vejamos. O artigo 183, inciso III, do Código Penal foi inserido na norma pelo Estatuto do Idoso. O legislador, nesse caso, expressamente positivou o afastamento das escusas absolutórias quando o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Não existe disposição similar relacionada às mulheres em contexto de violência doméstica e familiar.
Ora, se a intenção do legislador fosse afastar a aplicabilidade das imunidades absolutas também aos crimes praticados em âmbito doméstico e familiar, ele o teria feito de maneira expressa como o fez no caso do Estatuto do Idoso. Até porque a Lei nº 11.340/06 estabeleceu a violência patrimonial como uma das formas de violência contra a mulher em seu artigo 7º, ou seja, não foi omissa em relação à sua conceituação, assim, também não o seria com relação à eventual intenção de não aplicar as imunidades absolutas aos crimes patrimoniais.
O promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanches entende que “não permitir a imunidade para o marido que furta a mulher, mas permiti-la quando a mulher furta o marido, é ferir de morte, o princípio constitucional da isonomia” [2]. Para o jurista, somente uma declaração expressa em lei teria o condão de revogar os dispositivos do Código Penal, assim como fez o Estatuto do Idoso.
Acompanhando o entendimento do professor Rogério Sanches, cremos que devem, sim, ser aplicados os artigo 181 e 182 do Código Penal aos crimes patrimoniais, ainda que a vítima seja mulher e que o fato ocorra no âmbito das relações domésticas e familiares.
Não apenas pelo já exposto, mas também pelo fato de que, a pretexto de proteger a mulher, não podem ser ignorados princípios fundamentais do direito penal, mais especificamente o princípio da reserva legal.
Interpretar extensivamente o conceito de violência patrimonial trazido pela lei Maria da Penha a fim de subtrair direitos fundamentais do autor dos fatos fere o princípio da legalidade, na medida em que configuraria uma interpretação in malam partem, que não se pode admitir no Direito Penal pátrio.
A Lei nº 11.340/06 já trouxe mecanismos para a proteção da mulher no caso de violência patrimonial, tal como o previsto em seu artigo 24, inciso I, ao tratar das medidas protetivas de urgência. Senão, vejamos:
“Artigo 24 — Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida”.
Não foi outro o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o RHC 42.918/RS, em que se analisava o caso de um homem acusado de estelionato em desfavor de sua esposa e pleiteava a aplicação do artigo 181, I, do Código Penal.
Vejamos a ementa da referida decisão:
“Recurso ordinário em Habeas Corpus. Tentativa de estelionato (artigo 171, combinado com o artigo 14, inciso II, ambos do código penal). Crime praticado por um dos cônjuges contra o outro. Separação de corpos. Extinção do vínculo matrimonial. Inocorrência. Incidência da escusa absolutória prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal. Imunidade não revogada pela Lei Maria da Penha. Derrogação que implicaria violação ao princípio da igualdade. Previsão expressa de medidas cautelares para a proteção do patrimônio da mulher em situação de violência doméstica e familiar. Inviabilidade de se adotar analogia em prejuízo do réu. Provimento do reclamo.
(…) 5. Não há falar em ineficácia ou inutilidade da Lei 11.340/2006 ante a persistência da imunidade prevista no artigo 181, inciso I, do Código Penal quando se tratar de violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, uma vez que na própria legislação vigente existe a previsão de medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da ofendida. (…)” [3].
Afastar a aplicação das imunidades previstas no Código Penal seria utilizar-se de interpretação analógica maléfica ao réu, o que não se coaduna com os princípios de interpretação da lei penal e, mais especificamente, com o princípio da legalidade. Caso a intenção do legislador fosse de afastar a aplicação dos artigos 181 e 182, deveria tê-lo feito de forma expressa como o fez no Estatuto do Idoso.
E mais, foram feitas recentes alterações na Lei nº 11.340/06, exatamente em seu artigo 7º, que trata das espécies de violência. Se o legislador por um lapso não tivesse constado da lei o afastamento dos institutos em comento, poderia tê-lo feito nessa oportunidade, o que não ocorreu, demonstrando, no nosso entender, sua vontade de que as escusas continuem sendo aplicadas.
Concluímos que as escusas absolutórias previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal se aplicam às violações patrimoniais cometidas no âmbito da violência doméstica e familiar contra as mulheres, se não forem cometidas com grave ameaça ou violência contra a pessoa, sem que isso represente mácula ao sistema de proteção estabelecido pela Lei Maria da Penha. Assim, cabe à autoridade policial orientar a vítima e arquivar eventual boletim de ocorrência lavrado nesse sentido. Evidentemente, o fato de as mulheres não poderem contar com proteção penal nesses casos não implica estarem desamparadas pelo ordenamento jurídico, podendo se cogitar ressarcimento no âmbito civil, além das já citadas medidas protetivas de urgência.
[1] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei n. 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.71.
[2] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial (artigos 121 a 361). 14. Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: JusPODIVM, 2021, p.499.
[3] RHC 42.918/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 14/08/2014.