DO CONJUR
Entrou em vigor, no último dia 24 de maio, a Lei nº 14.344/2022, que, apesar de não trazer essa nomenclatura em sua ementa, vem sendo chamada de Lei Henry Borel, em referência ao menino que foi espancado e morto em 2021, dentro do apartamento em que residia com sua mãe e seu padrasto. Referida lei criou mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e adolescente, nos termos do §8º do artigo 226 e do §4º do artigo 227 da Constituição da República [1] e das disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte. Ademais, promoveu alterações no Código Penal, na Lei de Execução Peal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Lei dos crimes Hediondos e na Lei nº 13.431/17 (lei que estabelece o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência).
Convém alertar que não se pretende aqui esmiuçar detalhadamente todos os artigos da novel legislação, mas sim, estabelecer uma análise crítica, externando nossas primeiras impressões.
Logo no início, ao se analisar a ementa da lei, já se nota que ela possui bastante semelhanças com outras leis que compõem o, por nós chamado, microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas. Esse microssistema será aprofundado em artigos futuros, mas em resumo, entendemos que o sistema de persecução penal vem positivando a preocupação há décadas instaurada no âmbito da criminologia relacionada à vítima e à testemunha de atos criminosos, com um especial olhar para as vítimas vulneráveis. Assim, temos a Lei Maria da Penha, a Lei do Depoimento Especial e agora a Lei Henry Borel.
O Artigo 2º desta última, define violência doméstica e familiar contra criança e adolescente. Vejamos:
“Artigo 2º Configura violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial:
I – no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação”.
Este artigo, em seu parágrafo único nos informa que as formas de violência contra a criança e o adolescente são aquelas já definidas na Lei nº 13.431/2022 [2], o que mais uma vez reforça a existência do Microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas (lei que traz o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência) [3]. A respeito da mencionada lei, convidamos o leitor a conferir aqui o artigo escrito por nós nesta coluna. Além disso, outro indício de que se forma um microssistema de proteção às vítimas e às testemunhas, sobretudo às vulneráveis, é a inserção do inciso V ao artigo 4º da Lei nº 13.431/2017, vejamos:
“Artigo 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:
V – violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluídos os destinados a satisfazer suas necessidades, desde que a medida não se enquadre como educacional”.
Seguindo na análise da novel lei, percebemos que ela guarda inúmeras semelhanças com a Lei nº 11.340/06, inclusive no que tange ao papel da Autoridade Policial e às medidas protetivas de urgência. O papel da Autoridade policial vem previsto a partir do artigo 11 da Lei nº 14.344/2022 e deve ser conjugado ao artigo 6º do Código de Processo Penal.
O foco da lei é reforçar que o atendimento à criança e ao adolescente vítimas de violência doméstica e familiar deve ser especializado, humanizado e realizado por equipe com capacitação para tanto. Tais previsões se conjugam àquelas trazidas pela Lei nº 13.431/2017, em especial no que tange ao depoimento especial e à escuta especializada. Aqui, mais uma vez convidamos o leitor a conferir o artigo publicado nesta coluna [4] em que analisamos e diferenciamos os temas depoimento especial, escuta especializada e avaliação psicológica.
Outro ponto relevante trazido pela Lei Henry Borel são as medidas protetivas de urgência, que em muito se assemelham àquelas previstas na Lei nº 11.340/06. Aliás, a Lei nº 11.340/06 será especialmente relevante quando estivermos diante da hipótese trazida pelo inciso IV do artigo 15 que prevê a imediata apreensão da arma de fogo que estiver sob a posse do agressor. Isso porque, a lei em estudo não define o procedimento a ser adotado, assim, devemos nos valer do procedimento previsto na Lei Maria da Penha (artigo 12, inciso VI-A da Lei nº 11.340/06). Na hipótese de lacuna em uma das leis do microssistema, o intérprete deve, primeiramente, procurar a solução no próprio microssistema, antes de buscá-la nas demais normas penais ou processuais penais. Assim, a omissão do procedimento da lei em estudo deve ser integrada pela aplicação do regramento previsto na Lei Maria da Penha.
As medidas protetivas podem ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, da autoridade policial, do Conselho Tutelar ou a pedido da pessoa que atue em favor da criança e do adolescente. Perceba-se que, à semelhança do previsto no artigo 12-C da Lei Maria da Penha, a Lei nº 14.344/2022, prevê hipóteses em que a autoridade policial poderá determinar o afastamento do agressor do lar. Vejamos:
“Artigo 14. Verificada a ocorrência de ação ou omissão que implique a ameaça ou a prática de violência doméstica e familiar, com a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da criança e do adolescente, ou de seus familiares, o agressor será imediatamente afastado do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima:
I – pela autoridade judicial;
II – pelo delegado de polícia, quando o município não for sede de comarca;
III – pelo policial, quando o município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
§1º O Conselho Tutelar poderá representar às autoridades referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo para requerer o afastamento do agressor do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima.
§2º Nas hipóteses previstas nos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, bem como dará ciência ao Ministério Público concomitantemente”.
Aqui, cabe uma ressalva já por nós feita no artigo publicado nesta coluna [5] na última quinzena. A despeito da recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do artigo 12-C da Lei nº 11.340/06, cujo julgamento foi realizado pelo Plenário do STF, no dia 23/3/2022, tendo por relator o ministro Alexandre de Moraes, cremos que a concessão de determinadas medidas protetivas por agentes da autoridade policial (e não por esta que é integrante dos quadros de carreira jurídica do estado) se mostra em desacordo com a Constituição da República. Confiram-se os argumentos por nós externado naquela oportunidade:
“Por fim, há que se ressaltar que, a despeito da decisão emanada da instância superior, com relação à concessão das medidas protetivas pela autoridade policial (que se personifica no delegado ou delegada de polícia), não há objeção, vez que se trata de servidor integrante dos quadros de carreira jurídica do estado e que teria aptidão técnica e jurídica para tal decisão.
O que causa espécie, é a concessão feita pelo policial não integrante de carreira jurídica. Como designar uma atribuição a pessoa que não tem formação técnica jurídica para apreciar pedido que verse sobre limitações a direitos e garantias individuais?
Resta claro que a mens legis é de proteção integral à vítima de violência doméstica e familiar, no entanto, tal proteção também encontra barreiras em direitos e garantias individuais. Restringir direitos constitucionais deveria ocorrer apenas em situações excepcionais e por pessoas que tenham formação técnico acadêmica para tanto, ou seja, por integrantes das chamadas carreiras jurídicas de estado” [6].
Concluindo, relembramos que não se pretendeu esgotar o tema e analisar pormenorizadamente a Lei nº 14.344/2022, podemos dizer que, apesar de ser mais uma daquelas alterações legislativas carregadas de caráter punitivista e simbólico, como sói ocorrer no atual cenário da polícia criminal, a Lei Henry Borel, ainda que movida pelo senso comum e pela repercussão midiática de um caso específico, veio a somar e trazer mais garantias às vítimas e às testemunhas de crimes que se encontram em situação de hipervulnerabilidade.
[1] Constituição da República. Artigo 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(…)§8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(…)§4º A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente (BRASIL, 1988).
[2] Artigo 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:
I – violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico;
II – violência psicológica:
a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional;
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este;
c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha;
III – violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:
a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro;
b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por meio eletrônico;
c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação;
IV – violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
Fernanda Moretzsohn é delegada de polícia no estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.
Patricia Burin é delegada de polícia no estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.