Por Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin – DO CONJUR
No dia a dia das delegacias da mulher, nos deparamos predominantemente com mulheres com parcos recursos financeiros. Embora a violência doméstica e familiar contra as mulheres não conheça classes sociais, sendo um problema que permeia todas, as mulheres que procuram as delegacias em geral são pobres.
A prática mostra que, nas capitais dos estados e nos municípios maiores, os órgãos de proteção às mulheres e o sistema de persecução criminal são mais bem estruturados do que em municípios menores e mais afastados. É comum que, em determinados municípios, nem sequer exista Instituto Médico Legal, fazendo com que haja a necessidade de a vítima deslocar-se por longas distâncias a fim de ser submetida a exame de corpo. Mesmo quando há Instituto Médico Legal na localidade, muitas vezes este se situa distante da delegacia de polícia, o que demanda que a vítima utilize transporte público ou que uma equipe de policiais se mobilize para levá-la àquele órgão.
Somados esses dois fatores (usual carência econômica das vítimas e longas distâncias a serem percorridas), percebe-se absurdo número de casos em que as vítimas da violência física não se submetem a exames de corpo de delito, mesmo quando orientadas pelos policiais a respeito da necessidade e importância de fazê-lo.
O problema que se coloca pela falta de exame de corpo de delito é que a comprovação da materialidade delitiva fica prejudicada. Nos termos da Lei nº 12.830/2013, a investigação criminal visa a apurar circunstâncias, autoria e materialidade das infrações penais. A seu turno, o Código de Processo Penal, em seu artigo 158 prevê a indispensabilidade do exame de corpo de delito sempre que a infração deixar vestígios, o que de fato ocorre no crime de lesão corporal. Por certo que as lesões podem ser demonstradas por qualquer meio probatório, mas ainda assim a ausência de exame de corpo de delito costuma implicar não demonstração da materialidade delitiva.
Não se olvida que o parágrafo único do artigo 158 do Código de Processo Penal determina que se dê prioridade à realização do exame quando este envolver violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas a previsão se torna inócua quando a mulher nem sequer tem condições de ir se submeter ao exame.
Um caminho viável é a determinação de exame indireto de corpo de delito com fundamento nos prontuários médicos da vítima. Essa possibilidade decorre expressamente do disposto no artigo 12, §3º, da Lei Maria da Penha (são admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde). Mas, de novo, nem sempre a mulher se submete a atendimento médico. Continua-se sem prova da materialidade.
Diante desses casos, é comum que autoridades policiais façam juntar aos autos dos inquéritos fotos das lesões, sejam fotos colhidas na própria delegacia, quando do registro do caso, sejam fotos fornecidas pela própria vítima. Ocorre que, em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a utilização de fotografia da vítima não é o bastante para comprovar a violência sofrida.
Por unanimidade, a 6ª turma do STJ concedeu Habeas Corpus a acusado de violência doméstica, absolvendo-o por insuficiência probatória (STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 691.221/DF, relator: ministro Olindo Menezes — desembargador convocado do TRF 1ª Região, julgado em 26/4/2022). Reconheceu-se que o exame de corpo de delito pode ser dispensado caso a materialidade delitiva se comprove por outros meios, mas considerou-se que uma simples fotografia do rosto da vítima, não periciada, não constituiria prova suficiente da materialidade. Estar-se-ia diante de um indício leve, insuficiente para fundamentar condenação.
O entendimento do STJ é técnico, ainda que possa levar a situações que possam ser consideradas injustas, como a absolvição de uma pessoa que agrediu uma mulher em um contexto de violência familiar. Fotos podem ser manipuladas digitalmente, pode-se, com técnicas de maquiagem, forjar hematomas, etc.
Importante observar que o processo penal do Estado Democrático de Direito não pode se apartar do garantismo. E isso é verdade independentemente da qualidade da vítima. As regras do jogo devem sempre ser respeitadas.
A ideia de proteção das mulheres em situação de vulnerabilidade familiar não escusa o sistema de persecução penal de fazer provas adequadas e de respeitar o devido processo legal. A propósito, vale lembrar que os precedentes do STJ que determinam a especial valoração da palavra da vítima em casos de violência doméstica e familiar não determinam que a narrativa da vítima seja bastante para justificar condenações. Exige-se sempre que elementos outros corroborem as suas declarações.
Como, então, compatibilizar as exigências do devido processo legal e a realidade de que inúmeros são os casos em que a mulher não se submete a exame de corpo de delito nem a atendimento médico?
Nossa sugestão é que as delegacias de todo o país passem a adotar, como protocolo de atendimento, a realização de auto de constatação de lesões corporais nos casos de violência física contra as mulheres. A obrigatoriedade desse proceder poderia ser incorporada na própria Lei Maria da Penha.
Não que o auto de constatação pudesse substituir a prova pericial. Ele serviria como elemento corroborador da palavra da vítima.
Essa afirmação decorre do fato de o artigo 159 do Código de Processo Penal prever que o exame de corpo de delito será realizado por perito oficial ou, na falta deste (parágrafo primeiro), por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. Por certo não há profissionais médicos nas delegacias de polícia, de modo que o auto não poderia substituir a necessidade de perícia.
Seria então possível que, dentro da própria delegacia de polícia, no momento da confecção do boletim de ocorrência ou do pedido de medida protetiva de urgência, dois policiais fossem indicados pela autoridade policial para que realizassem um “exame provisório” e constatassem as lesões aparentes apresentadas pela vítima. Após essa análise, tomadas fotografias, as lesões aparentes seriam descritas em um auto de constatação de lesões corporais.
Tal procedimento já é adotado em algumas unidades de polícia judiciária no estado do Paraná, em que é confeccionado um “auto de constatação provisória de lesões corporais” contendo a assinatura da mulher, da autoridade policial e de duas testemunhas, além da descrição sumária das lesões e fotografias, quando autorizada sua tomada pela vítima.
Cremos que, ao assim proceder, estar-se ia compatibilizando as exigências do devido processo legal com a necessária proteção das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, promovendo-se a adequada persecução penal das pessoas agressoras.