O poder do indiciamento: dois pesos, duas medidas – POR: Por Adriano Sousa Costa, Isabella Joy Lima e Silva e Ana Scarpelli de Andrade
O Estatuto do Delegado, Lei nº 12.830/2013, dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de Polícia, sobressaltando o papel da autoridade policial na persecução penal.
O referido diploma legal deu ainda maior ênfase ao ato de indiciamento, previsto em seu artigo 2º, § 6º.
Infirma-se que o indiciamento é ato privativo do delegado de Polícia, sendo que este se dará por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica, que deverá indicar a autoria, a materialidade e as circunstâncias da infração penal.
Tal relevante ato já havia sido prestigiado em dispositivos legais anteriores ao Estatuto do Delegado. Por exemplo, na Lei de Lavagem de Capitais (mais especificamente no artigo 17-D), quando o legislador homenageou o ato formal de indiciamento com o tônus de afastar cautelarmente o servidor público envolvido no contexto de lavagem de suas funções.
Ainda que o STF tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tal dispositivo da Lei nº 9.613/98 (ADI 4.911), quando o assunto é a Lei Maria da Penha, os tribunais superiores estão conferindo diferenciada dignidade à decisão fundamentada de indiciamento.
E isso não nos causa espanto, pois o Supremo Tribunal Federal, no contexto da Lei nº 11.340/2006, flexibilizara até mesmo cláusulas de reserva de jurisdição. O STF, na ADI nº 6.138, diz constitucional a Lei nº 13.827/2019, a qual permite que, em uma curiosa sucessão funcional, um policial ostensivo decrete medida protetiva de urgência (sem requerer o ato formal de indiciamento, inclusive).
Isso mostra que o mesmo instituto jurídico pode receber diferentes dignidades, a depender do contexto protetivo em que esteja sendo analisado.
Portanto, no contexto protetivo da Lei Maria da Penha, há maior sensibilidade legislativa e jurisprudencial, principalmente no que tange à flexibilização de prerrogativas funcionais e garantias de suspeitos de prática de infrações penais. Tudo parece se justificar pela situação exponencial de feminicídios no Brasil. E esse raciocínio não deve ser alijado do presente debate.
A atribuição de culpa escalonada na persecução penal
O uso de nomenclaturas próprias para cada uma das fases escalonadas da persecução penal já indica uma progressividade na formação da culpa do suposto autor do fato.
Alguém que seja, por mera suposição, o autor de uma infração penal é considerado suspeito. Em havendo indícios concordantes acerca da prática da infração penal, o mesmo suspeito é alçado à condição de indiciado (por decisão fundamentada do Delegado de Polícia). O indiciado pode, pela formação da opinio delicti do titular da ação penal (Ministério Público ou parte), figurar como acusado, se a peça inicial (denúncia ou queixa) for ofertada/recebida contra ele. Se o processo se desenvolver no sentido de angariar elementos convincentes sobre a culpa do indivíduo será ele condenado pela prática da infração penal.
Em resumo, existe um agravamento da nomenclatura imposta ao investigado à medida que o crivo de diferentes corporações persecutórias vão chancelando a existência de elementos de autoria e materialidade criminosa em desfavor do indivíduo objeto da investigação inicial.
E o primeiro (e não menos importante) ato de confirmação de justa causa mínima sobre a autoria e a materialidade criminosas é o indiciamento. Não traz a certeza de uma condenação (até porque nem sempre a realidade é tão popperiana), mas também não é decisão frívola e inconsistente de imputação criminal.
Tal ato, que é privativo do delegado de Polícia, deriva de investigações policiais, nas quais se percebe a contundência dos elementos que apontam para o sujeito como autor do delito e, portanto, fundamenta tal decisão com elementos probatórios da materialidade e indícios suficientes de autoria.
Da emergência persecutória no contexto da violência doméstica e familiar
Como dito acima, a Lei nº 13.827/2019, alterada pela Lei nº 14.188/2021, a qual flexibilizou drasticamente a cláusula de reserva de jurisdição, permitiu o afastamento do agressor do lar por ato de agentes de segurança pública.
Em uma curiosa sucessão funcional de agentes públicos, começando pelo delegado de Polícia e se estendendo até policiais ostensivos (que talvez sequer ostentem nível superior e formação jurídica), permitiu-se atos típicos do Poder Judiciário a quem dele — organicamente — não faz parte. Tudo isso guardado pelo senso de emergência persecutória no caso da Lei Maria da Penha.
Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: I – pela autoridade judicial; II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. (Lei nº 11.340/2006).
E essa necessidade de elementos mínimos de justa causa, associada à lógica protetiva necessária em contextos de grande interesse social, permite-nos perceber que o ato de indiciamento, que é o primeiro ato técnico-jurídico realizado na persecutio, passou a receber a devida importância cerimonial dos Tribunais Superiores no contexto tuitivo da Lei Maria da Penha.
Das medidas protetivas de urgência
Com a intenção de reprimir e inibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) elencou um rol de medidas protetivas de urgência que poderão ser aderidas ao agressor (artigo 22) e também à ofendida (artigos 23 e 24).
Isto posto, verifica-se que o artigo 22 da lei supracitada informa que tais medidas protetivas serão aplicadas quando constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A doutrina tem entendido que as medidas protetivas de urgência possuem natureza jurídica de medidas cautelares. Sendo assim, como espécies de medidas cautelares, as medidas protetivas são condicionadas para a sua decretação a comprovação do fumus comissi delicti e do periculum libertatis.
No entanto, em harmonia com a proteção dos direitos fundamentais da mulher e a racionalidade instrumental das medidas cautelares, a concessão de medida de urgência pode ser deferida em plano cognitivo mais sintético, mas sua subsistência e permanência no tempo demandam elementos mais consistentes.
A fumaça da ocorrência da infração penal não subsiste sem um ato minimamente formal sobre tal. Nesse caso, a tal fumaça parece derivar do relatório policial conclusivo e do indiciamento nele incrustado. Não pode o boletim de ocorrência ser o supedâneo para a manutenção de uma medida desse calibre.
As medidas protetivas de urgência são medidas cautelares situacionais, ou seja, dependem da manutenção dos motivos que demonstram a urgência de tal medida e da percepção de ocorrência uma infração penal. Desse modo, desaparecida a situação de perigo para a vítima, ou apontada a inexistência de infração penal, deve a autoridade judicial rever sua decisão sobre o deferimento da medida protetiva, podendo revogá-la.
Da natureza transitória das medidas protetivas
Percebe-se uma discussão muito profunda sobre a autonomia das medidas protetivas frente à persecutio criminis, as quais lhe deveriam conferir razão ontológica.
Há julgados que entendem que tais medidas acauteladores possuem natureza jurídica de tutela inibitória, visto que, para que possam ser concedidas, não há necessidade de um inquérito policial instaurado ou um processo criminal em curso para seu deferimento.
“As medidas protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. (STJ REsp 1.419.421 /GO RECURSO ESPECIAL 2013/0355585-8)”
Não há necessidade de formalização burocrática acerca da investigação de atos de risco de violência doméstica ou familiar contra a mulher, mas o referido contexto precisa existir. Isso não pode indicar que não necessitem de urgência criminal para subsistir.
Por isso, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça defende que, ainda que reste preservado o caráter autônomo das medidas protetivas de urgência, não podem ser aplicadas ad eternum, devendo o magistrado analisar periodicamente a pertinência da manutenção da cautela imposta, a exemplo do mandamento simétrico trazido no artigo 316 do Código de Processo Penal:
Como cediço, esta Corte possui o entendimento segundo o qual “as medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade — vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus fins” (AgRg no REsp n. 1.769.759/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 7/5/2019, DJe de 14/5/2019).2. Sendo assim, não há como se esquivar do caráter provisório das medidas protetivas, ainda que essa provisoriedade não signifique, necessariamente, um prazo previamente definido no tempo, até porque se mostra imprescindível que a proteção à vítima perdure enquanto o risco recair sobre ela, de forma que a mudança ou não no estado das coisas é que definirá a duração da providência emergencial.(HC n. 605.113/SC, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 8/11/2022, DJe de 11/11/2022.) (GRIFO NOSSO)”
O substrato essencial para a manutenção da medida cautelar
O STJ foi um pouco além da discussão sobre a autonomia da medida protetiva e entendeu que é indevida a manutenção das medidas protetivas de urgência na hipótese de conclusão do inquérito policial sem indiciamento do acusado, desse modo expôs:
“No caso, foram deferidas medidas protetivas pelo prazo de seis meses. Ao término desse prazo, as medidas foram prorrogadas por mais seis meses. Todavia, apesar de as medidas protetivas terem sido devidamente fundamentadas, ocorreu a conclusão do inquérito policial sem indiciamento do investigado. Diante disso, não faz mais sentido a manutenção dessas medidas. As medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade — vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus fins. STJ. 6ª Turma. RHC 159.303/RS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 20/09/2022 (Info 750).
A imposição das restrições de liberdade ao recorrente, por medida de caráter cautelar, de modo indefinido e desatrelado de inquérito policial ou processo penal em andamento, significa, na prática, infligir lhe verdadeira pena sem o devido processo legal, resultando em constrangimento ilegal. STJ. 5ª Turma. RHC 94.320/BA, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 09/10/2018.
As medidas de urgência, protetivas da mulher, do patrimônio e da relação familiar, somente podem ser entendidas por seu caráter de cautelaridade — vigentes de imediato, mas apenas enquanto necessárias ao processo e a seus fins. STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1.769.759/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 07/05/2019.”
Esse calibre de decisão reacende o debate sobre o verdadeiro caráter orbitário da decretação das medidas protetivas, pois amarra visceralmente a medida protetiva ao substrato criminoso, o qual lhe serviu de justificativa decretadora.
Apontam, também, que a decretação de algumas dessas medidas até comporta flexibilizações iniciais (a exemplo do artigo 12-C da Lei Maria da Penha), pois o caráter emergencial da decretação da medida assim o requer. Contudo a sua continuidade depende do primeiro ato técnico-jurídico de apreciação dos elementos de autoria e de materialidade criminosas: o indiciamento (ou o não-indiciamento).
Da imprescindibilidade de confecção do relatório
Conquanto o indiciamento possa ser realizado antes da confecção do relatório policial, é natural que a referida decisão do Delegado de Polícia — nos casos em que não haja prisão em flagrante — dê-se na conclusão da investigação criminal, ou seja, no relatório.
Essa arquitetura desejável funciona como mecanismo de garantia, vez que aponta para a necessidade de finalização das diligências possíveis (no prazo de remessa dado pela Lei) antes da complexa decisão de indiciamento.
O delegado passou a precisar fundamentar a sua decisão e apontar para a incidência penal cabível, o que lhe dá uma amplitude até então limitada por aqueles que defendiam um relatório meramente cronológico de diligências.
Isso porque ao delegado de Polícia passou a ser expressamente determinado fazer juízo fático-jurídico sobre os fatos em apuração (o que historicamente a doutrina mais ortodoxa e vetusta nunca aceitou), tudo pelo disposto no artigo 2º, parágrafo 6º, da Lei nº 12.830/2013.
Após a Lei nº 12.830/2013, o relatório policial não mais se restringe a uma mera peça de menção cronológica de diligências, portanto.
Conclusão
Todo o exposto nos empurra para a importante conclusão sobre o vínculo fraterno entre relatório policial final e a decisão de indiciamento, permitindo-se que o delegado de Polícia, sob a manto obrigacional de decidir sobre este, apontar não só a cronologia das diligências, mas também discorrer sobre a sua percepção técnico-jurídica dos fatos criminosos e de suas circunstâncias.
Daí, acerta os Tribunais Superiores quando sobressaltam a importância do indiciamento como mecanismo mantenedor da higidez das medidas protetivas de urgência. Até porque é o mais breve e contemporâneo juízo de possibilidade criminosa emitido por um agente da persecução penal.
O indiciamento, e o que ele representa (a existência de indícios razoáveis de autoria e de materialidade), são verdadeiramente essenciais para a manutenção das medidas protetivas de urgência, sendo imprescindível que se comprove o mínimo para a subsistência teleológico-temporal da medida. Não dá para desprezar a racionalidade disso e a importância de tal decisão prolatada pelo delegado de Polícia.