Por Patricia Burin, Fernanda Moretzsohn e Ricardo Alves de Macedo – Artigo original do CONJUR
Que a Lei Maria da Penha é uma daquelas leis que “pegaram”, não temos dúvidas. Essa expressão usada no âmbito popular e entre os juristas indica que se trata de uma norma que realmente é aplicada no dia a dia. A Lei Maria da Penha, mais do que ter eficácia jurídica, é conhecida por todos, especialmente em sua vertente de proteção à mulher nas relações familiares.
Mas a Lei Maria da Penha vai além de proteger a mulher vítima em seu ambiente familiar. Ela cria um microssistema de proteção ao gênero feminino que abrange, sim, a violência familiar, mas também a violência ocorrida no âmbito da unidade doméstica e das relações íntimas de afeto, independentemente de coabitação. Representa um importante instrumento legal de proteção aos direitos humanos das mulheres para uma vida livre de violência, sob qual forma for. Nesse sentido, confira-se o artigo 5º da Lei Maria da Penha:
“Art. 5º — Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”
Assim, a título de exemplo, a ex-namorada ameaçada pode fazer uso das medidas protetivas de urgência tanto quanto a babá agredida pelo patrão. Tais incidências decorrem da própria letra da lei. Neste artigo vamos abordar a possibilidade de a norma ser interpretada extensivamente, para abranger sob seu manto protetivo também mulheres vítimas de violência de gênero em seu núcleo de trabalho.
A inquietação surgiu, originalmente, de dois casos práticos, um que aportou à Delegacia de Navegantes, outro ao escritório do colega de Ribeirão Preto (SP), Ricardo Alves de Macedo, que divide conosco este texto. Em ambos os casos, mulheres foram vítimas de violência de natureza sexual perpetrada por colegas de trabalho e, no curso da investigação, se viram diariamente expostas a seus algozes, obrigadas a com eles conviverem em seus locais de trabalho. Somaram-se, à curiosidade prática, dois casos bastante veiculados na mídia nas últimas semanas: a imputação de assédios sexuais feita ao Presidente de um banco estatal e a de violência física a um procurador municipal, ambos os casos tendo como vítimas colegas de trabalho do sexo feminino.
Nos questionamos, então: caberia medida protetiva com base na Lei Maria da Penha? De plano, afirmamos que sim, que é possível a concessão de medidas protetivas de urgência a mulheres vítimas de crimes perpetrados por colegas de trabalho. Explicamos, registrando que em ambos os casos práticos mencionados foram concedidas medidas protetivas, afastando os investigados do local de trabalho com vistas à proteção da saúde mental da colega vitimada.
A Lei Maria da Penha, como temos insistido, institui entre nós um microssistema de proteção às mulheres. É um divisor de águas. Escancarou-se a necessidade de o Estado intervir nas situações em que a violência se fundamenta no gênero da vítima, ou seja, naquela violência que acontece pelo simples fato de a vítima ser mulher.
Um dos méritos da norma é assumir que a violência de gênero contra a mulher é uma responsabilidade do Estado brasileiro, e não apenas uma questão familiar. Ou seja: é interesse de todos, pois erigida à condição de direito coletivo lato sensu, capitaneada pelo primado da dignidade da pessoa humana, fundamento da nossa República (CF, artigo 1º, III).
Segundo o artigo 6º da Lei Maria da Penha, “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos“. Ao assumir essa perspectiva, a lei atende a inúmeros tratados assinados pelo Estado brasileiro, tais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw); a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará); e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), entre outros.
A Constituição Federal, muito antes da edição da Lei Maria da Penha, já considerava as mulheres um grupo vulnerável, merecedor de especial proteção. Anos depois, a Lei se declarou protetiva dos direitos das mulheres em vários aspectos, dentre eles, o psicológico.
Já tivemos algumas oportunidades, nesta coluna, de lembrar que os crimes sexuais atingem a vítima não só fisicamente, mas também emocionalmente, psicologicamente. Atingem-lhe a dignidade, direito humano, direito fundamental.
Se a Lei Maria da Penha é um instrumento de proteção aos direitos fundamentais das mulheres, nada impede que a norma receba, no caso em exame, interpretação extensiva para se admitir que também a mulher vítima de violência de gênero no âmbito laboral busque medida protetiva de urgência contra seu agressor. Se o Estado brasileiro se propôs a proteger os direitos humanos das mulheres, deve fazê-lo em todas as searas de sua vida: doméstica, familiar, privada, pública, laboral.
Medida cautelar que são, as medidas protetivas de urgência trazem em si pretensão assecuratória, garantidora. O que lhes justifica a existência é a possibilidade de novas situações em que a mulher se veja agredida (em sua integridade física, moral, emocional, etc). O caráter urgente é inerente às providências cautelares, de modo que o órgão julgador tem de contentar-se com uma averiguação superficial e provisória e deve conceder a medida pleiteada desde que os resultados dessa pesquisa lhe permitam formular um juízo de probabilidade acerca da existência do direito alegado, a par da convicção de que, na falta do pronto socorro, ele sofreria lesão irremediável ou de difícil reparação.
Os pressupostos legais para a concessão das medidas protetivas de urgência são verdadeiramente as condições da ação cautelar consubstanciadas no fumus boni juris e no periculum in mora. Em outras palavras, para que as medidas protetivas sejam concedidas, deve haver ao menos indícios de autoria e materialidade de um crime praticado contra a mulher em virtude da situação de gênero (fumus boni juris) e o perigo da demora (periculum in mora), a fim de proteger a mulher da reiteração criminosa.
Visando a orientar os que laboram na área da violência doméstica, a Comissão Permanente de Combate à Violência (Copevid) 7 — editou o enunciado nº 004/2011 que pontua:
“As Medidas de Proteção foram definidas como tutelas de urgência, sui generis, de natureza cível e/ou criminal, que podem ser deferidas de plano pelo Juiz, sendo dispensável, a princípio, a instrução, podendo perdurar enquanto persistir a situação de risco da mulher.” (Com nova redação aprovada na Reunião Ordinária do GNDH de 12 e 14/3/2013 e pelo Colegiado do CNPG de 29/4/2014).
Tal qual as medidas protetivas em casos de violência no âmbito doméstico e familiar, parece-nos que o pedido de medidas protetivas em caso de violências ocorridas no âmbito das relações de trabalho pode ser encaminhado diretamente pela vítima ao Poder Judiciário (artigo 19 da Lei Maria da Penha), ou à autoridade policial, que remeterá o pedido à autoridade judiciária no prazo de 48 horas (artigo 12, III, da Lei).
Por fim, quanto à competência jurisdicional, pensamos que, não decorrendo a violência diretamente da relação de trabalho, cabe à Justiça comum a apreciação deste pedido de medida protetiva.
Conclui-se, diante de todo o exposto, que é perfeitamente possível o deferimento das medidas protetivas de urgência em favor de mulheres vitimadas no âmbito de suas relações de trabalho. Estaríamos, assim, protegendo a dignidade daquela pessoa do gênero feminino e respeitando o primado da dignidade da pessoa humana, verdadeira cláusula pétrea no Estado Democrático de Direito, prevista no texto constitucional e respaldada pelos tratados de que o Brasil é signatário.