Por Fernanda Moretzsohn e Patricia Burin
No último artigo por nós escrito, debatemos a configuração típica do descumprimento de medida protetiva de urgência quando o/a destinatário/a da ordem restabelece o convívio com a beneficiária mediante consentimento dela. Pontuamos que o artigo 24-A da Lei 11340/06 foi inserido no ordenamento jurídico pela Lei 13.641/2018 com o intuito de tipificar a conduta de descumprir decisão judicial que defere as medidas protetivas, prevendo pena de três meses a dois anos de detenção, na medida em que o Superior Tribunal de Justiça tinha pacificado seu entendimento no sentido de que tal proceder não poderia ser enquadrado no crime de desobediência a ordem judicial.
Certo é que a tipificação dessa conduta inserida na Lei 11340/06 tem como principal razão de existir dar maior proteção à mulher vítima de violência e evitar que o agressor pratique novas condutas criminosas contra ela. Ocorre que, na vivência da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, percebemos inúmeros casos em que o casal reata o relacionamento ainda na vigência das medidas protetivas impostas. No artigo anterior discutimos a (im)possibilidade de responsabilização do/a destinatário/a da ordem judicial pelo descumprimento da medida protetiva de urgência.
A finalidade primeira deste artigo é discutir se há cometimento de crime por parte dessa mulher que, ciente do deferimento da medida protetiva de urgência em seu favor, retoma a convivência com o/a suposto/a agressor ou procura manter contato com ele/ela (insistimos que não cumpre ao aplicador da lei julgar os motivos que a levaram a reatar o relacionamento com o agressor ou, ainda que não tenha reatado, que não mais tenha interesse na manutenção das medidas protetivas, devendo, isso sim, entender o ciclo da violência).
Entendemos que a mulher não comete crime nestas circunstâncias.
A Lei Maria da Penha é um microssistema jurídico que foi criado com o intuito de proteger a mulher vítima de violência doméstica, dando concretude ao ideal de respeito à dignidade da pessoa humana e de busca pela equidade, veiculados na Constituição Federal. As medidas protetivas de urgência são um mecanismo criado pela lei para efetivar essa proteção.
O/A destinatário/a da decisão concessiva da medida protetiva de urgência é a pessoa apontada como agressora (artigo 22 da Lei Maria da Penha). A essa pessoa cabe o dever de submeter-se à ordem judicial (sob pena de incidir no crime previsto no artigo 24-A).
É óbvio que a colaboração da mulher destinatária da medida é fundamental para a sua eficácia, mas a Lei Maria da Penha não cria, para a mulher, dever correlato às medidas protetivas de urgência, de modo que não é razoável considerar que a mulher cometeria crime de descumprimento de medida protetiva ao procurar o/a destinatário/a da ordem de afastamento.
O sistema, lembre-se, é de proteção às mulheres, não se podendo admitir que seja usado contra quem dele deve se beneficiar, especialmente por ausência de previsão legal. Na Espanha, tanto o homem quanto a mulher podem ser responsabilizados pela desobediência às medidas protetivas, lá chamado de “quebrantamiento de condena” [1]. Não é o que ocorre no direito pátrio. Aqui, a decisão tem como destinatário a pessoa agressora (ele/ela deve se afastar da vítima).
Certo é que de algumas decisões judiciais que concedem as medidas protetivas já consta a observação de que a vítima, caso perca o interesse na manutenção, deverá informar tal condição ao poder judiciário. De muitas consta, ainda, que em eventual reatamento do relacionamento, as medidas protetivas deixam de ter validade. Tal consequência é plenamente admissível, sendo, porém, descabido considerar-se que a mulher beneficiária da medida protetiva de urgência comete o crime do artigo 24-A quando procura a pessoa destinatária da ordem ou restabelece a convivência com ela.
Se eventualmente a mulher decidir voltar a conviver com seu agressor, ou ainda que não volte a conviver, entender que não mais tem necessidade das medidas protetivas, deve ela comunicar tais condições às autoridades, seja diretamente ao Poder Judiciário, seja pela Delegacia Especializada, seja pela Patrulha Maria da Penha, onde esta existir. Mas não há que se falar em conduta típica.
Seria desarrazoado, reitere-se, utilizar o microssistema de proteção às mulheres para puni-la.
E nem se argumente que o artigo 24-A da Lei Maria da Penha se limita a criminalizar a conduta de descumprir a medida protetiva, o que poderia abranger a mulher beneficiária. Como mencionado linhas acima, as medidas protetivas de urgência, por força do artigo 22 da Lei Maria da Penha, se destinam à pessoa agressora, sendo forçoso interpretar o artigo 24-A com os olhos para este dispositivo.
O crime do artigo 24-A da Lei Maria da Penha só pode ser cometido pela pessoa agressora, destinatária que é das medidas protetivas de urgência.
Deve ser afastada a tese de que a mulher que procura a pessoa agressora ou reata com ela o relacionamento incidiria no crime de desobediência. Em primeiro lugar, como já pontuado, a interpretação sistemática da Lei Maria da Penha permite afirmar que as medidas protetivas de urgência vinculam a pessoa agressora somente. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça, antes da existência do artigo 24-A da Lei Maria da Penha, afastou a possibilidade de o descumprimento de medida protetiva pela pessoa agressora configurar crime de desobediência, entendimento que, com muito mais razão, deve ser aplicado à hipótese em estudo.
Mas precisamos, aqui, nos aprofundar um pouco. Como profissionais da área, em contato com as mais variadas situações, não podemos fechar os olhos para a realidade (a imparcialidade é fundamental para uma boa elucidação dos fatos). No dia a dia das Delegacia da Mulher, nos deparamos com casos em que a vítima permitiu que a pessoa agressora retornasse à residência do casal, porém, após uma discussão, ainda que não tenha havido novo episódio de violência, ela procure a delegacia para noticiar o descumprimento das medidas protetivas (tais ocorrências são exceções e não devem ser utilizadas para desqualificar os institutos da Lei Maria da Penha).
A medida protetiva vira uma espécie de trunfo, de carta na manga. Um mecanismo de chantagem. Ao menor sinal de que o relacionamento não está da forma como a mulher gostaria, ela notifica um descumprimento de decisão judicial por parte do autor. Estaria ela cometendo crime?
Estamos, perceba-se, um passo à frente agora. Não se discute que a mulher não comete crime ao reatar o relacionamento ou ao procurar a pessoa agressora. O que se questiona, aqui, é se a mulher que reatou o relacionamento ciente da medida protetiva de urgência comete crime ao comunicar que a pessoa agressora estaria descumprindo a medida.
Ao menos em tese conseguimos pensar em duas figuras típicas possíveis: calúnia e denunciação caluniosa. No primeiro tipo, imputa-se falsamente a alguém fato definido como crime. No segundo, mais grave, a pessoa comunicante dá causa à atuação estatal, imputando crime (para o que aqui interessa) a alguém que sabe ser inocente.
Por mais que rechacemos a conduta em exame, em especial pelos graves danos que pode representar à dignidade daquela pessoa a quem foi imputado o descumprimento de medida protetiva, pensamos que a punição criminal desta mulher esbarra na questão do dolo.
Como se sabe, o dolo deve abranger todos os elementos do tipo penal. Tanto na denunciação caluniosa quanto na calúnia, quem faz a imputação deve saber da falsidade da sua comunicação.
Se nem mesmo há consenso entre os operadores do Direito a respeito do cometimento ou não do crime do artigo 24-A da Lei Maria da Penha por aquela pessoa que restabelece o contato ou a união com a suposta vítima ante o seu consentimento, não parece adequado supor que a beneficiária da medida protetiva saiba que a pessoa agressora não estaria em descumprimento das medidas protetivas de urgência. Não se poderia cogitar da presença desse dolo específico que configuraria o crime, de modo que, por mais reprovável que seja a conduta, ela não se configuraria criminosa.
Evidentemente, seria possível pensar em responsabilização civil, mas o direito penal, com sua rigidez e sua função de ultima ratio do sistema não pode ser chamado a repreender a conduta.
O que todas as nossas discussões têm nos convencido é da complexidade social da violência contra as mulheres. O problema é muito maior do que o Direito Penal pode solucionar, sendo fundamental que existam políticas públicas de conscientização e consequente prevenção da violência, aplicando-se o olhar multidimensional que o tema demanda.