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O papel da rede de apoio na escuta de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual

5 de outubro de 2020

Fernanda Lima Moretzsohn de Mello – Delegada de Polícia da PCPR

Patricia Burin – Delegada de Polícia da PCSC

 

A recente polêmica vinculada à divulgação da gravidez de uma menina capixaba de apenas 10 anos de idade em razão de continuados estupros que lhe foram infligidos traz mais uma vez à tona a necessidade de se falar sobre abuso sexual de crianças e adolescentes. Neste artigo, em particular, pretendemos dialogar com todos os integrantes da rede de proteção a respeito de como se deve agir quando a criança revela, espontaneamente, ter sido vítima de abusos.

É inequívoco que o abuso sexual de crianças e adolescentes é um crime muito grave, que fere o íntimo da pessoa que ainda está em formação, gerando danos emocionais e psicológicos permanentes. O mais dramático desses casos é que os abusadores são, normalmente, pessoas próximas à criança e ao adolescente, pessoas que deveriam cuidar e proteger, mas optam por abusar, lesar.

Essa característica, de ser cometido por parentes, pessoas próximas ou da confiança da criança ou do adolescente faz com que a prevenção desses crimes seja extremamente difícil. Mas forçoso é registrar que a redução da incidência desses crimes passa por dois pontos: educação sexual para que se reconheçam atos de abusos e punição dos agressores.

Ressalte-se que quando se fala em educação sexual, não se está falando em sexualização precoce de crianças, mas sim, de ensiná-las a reconhecer possíveis abusos, ensinar-lhes sobre consentimento. E esta é a palavra-chave na educação sexual e na prevenção de eventuais violências sexuais. A criança deve saber que em seu corpo somente podem tocar aqueles a quem ela permitir.

É papel não apenas da família, mas também da escola e de toda a sociedade ensinar como reconhecer uma ameaça de abuso e saber diferenciar um carinho de uma carícia libidinosa.

Ao lado disso, faz-se necessário que haja adultos em quem as crianças e adolescentes possam confiar caso os abusos ocorram. E estes, devem imediatamente reportar os fatos às autoridades policiais.

Necessário se faz entender como agir caso essa criança ou adolescente queira revelar espontaneamente um evento de abuso sexual. Deve-se ter cautela para que se evite a chamada revitimização, tema que será tratado mais adiante e também garantir ou, ao menos tornar mais provável, a punição do agressor.

Não se pode permitir que a falta de aptidão técnica da pessoa para quem a vítima resolve revelar a situação abusiva gere uma situação ainda mais penosa para ela.

É inconcebível que a vítima seja submetida a mais experiências traumatizantes além do real abuso já sofrido. A demasiada exposição da vítima muitas vezes pode apresentar-se até mais danosa do que o sofrimento causado pelo abuso.

A falta de cuidado na oitiva de uma vítima, para além de configurar desrespeito a seus direitos fundamentais, pode futuramente prejudicar a produção de provas e ocasionar indevidas absolvições ou condenações, impedindo assim que se encerre o ciclo de violência a que ela é submetida.

Reside aí a necessidade de que toda a rede de apoio e os familiares sejam instruídos sobre como agir em caso de revelação de abusos, a fim de evitar a revitimização da criança e do adolescente e garantir a efetividade da persecução criminal, seja para proteger eventual investigado inocente, seja para assegurar a adequada punição do abusador.

Quando nos referimos à escuta de uma criança ou adolescente temos que levar em conta que é fundamental termos cuidado para não sugestionar respostas. A vítima deve ser acolhida, ouvida, mas jamais pressionada a contar. Quem tenta extrair a verdade da criança ou do adolescente não os está ajudando.

Além disso, há que se levar em conta que a memória é um processo extremamente frágil e que as lembranças não são idênticas à realidade e há sempre o risco de nossa memória nos trair.

Sobre memória, convém esclarecer que ela é um processo composto por três fases. Na primeira, denominada aquisição ou aprendizagem, há o recebimento da informação pelo cérebro. Essa fase depende de nossas emoções e de nosso conhecimento prévio, da nossa bagagem. A aquisição da informação passa por uma espécie de filtragem, de certa maneira, haverá uma interpretação da realidade.

Em seguida, as informações são consolidadas. A realidade apreendida é convertida em códigos mentais e armazenada. O cérebro tende a armazenar as memórias com outras parecidas a elas, numa espécie de catalogação. Por fim, a última fase da memória é a evocação, que é a lembrança dos fatos: o cérebro decodifica a informação consolidada. Nesse processo, algumas informações são perdidas, outras são transformadas.

Isso acontece não apenas quando esquecemos fatos ou detalhes, mas também quando começamos a confundi-los ou até mesmo inventá-los. Falamos das falsas memórias. Quanto mais vezes fizermos o processo de evocação, maior a chance de criarmos uma falsa memória.

As falsas memórias são muito perigosas nos casos que envolvem crimes contra a dignidade sexual: ela pode condenar um inocente ou absolver um culpado. Isso porque, nesses casos, a palavra da vítima adota especial importância como elemento de convicção, pois os crimes ocorrem normalmente na clandestinidade, sem a presença de terceiros e, muitas vezes, sem deixar vestígios materiais.

Esclareça-se que as falsas memórias não significam mentira. A pessoa acredita no que está contando. Mas sua memória foi distorcida pelo tempo, pelo trauma ou pela insistente evocação. Aqui, a primeira orientação a respeito de como agir na hipótese de relatos de abusos: a criança e o adolescente não devem ser chamados a falar dos fatos reiteradamente.

A segunda orientação é ouvir o relato da criança ou do adolescente com naturalidade, com atenção e empatia, mas sem demonstrações de emoções exacerbadas, sem emissão de juízos de valor (algo como um psicólogo faria).

A terceira orientação é: não se pode sugerir os acontecimentos. É natural que o entrevistador tente suprir a falta de vocabulário da criança, mas quando se questiona o que aconteceu, é preciso ter paciência para esperar a resposta que vier da criança e do adolescente, com a articulação que eles tiverem. Quando se questiona sugerindo uma resposta, corre-se o risco de obter uma falsa resposta positiva.

Isso ocorre porque a criança pode imaginar a cena e sua imaginação se misturar ao que ela tem armazenado no cérebro, mas também porque a vítima pode responder afirmativamente por acreditar que essa é a resposta que o entrevistador espera dela. Então a orientação é permitir que a criança fale no seu tempo, fazendo apenas questões abertas, deixando a criança livre para relatar os fatos. Respostas muito vagas podem ensejar novas perguntas, mas sempre com o cuidado de não induzir as respostas.

Outra postura importante é impedir que a criança ou o adolescente ouçam o relato de outra pessoa a respeito do evento. Esse proceder também pode gerar falsas memórias, sendo esta a quarta orientação.

Por fim, vale tecer considerações sobre a revitimização, que pode ser conceituada como o sofrimento continuado ou repetido da vítima de um ato violento. É uma violência psicológica que causa novos traumas. Acontece, entre outras hipóteses, quando obrigamos a criança e o adolescente a reviver a violência, narrando-a repetidamente.

Antes do advento da Lei nº 13.431/2017, sem a previsão de um procedimento adequado para escuta de crianças e adolescentes, estas eram submetidas a inúmeras entrevistas com os mais variados profissionais (professores, polícia judiciária, conselho tutelar, poder judiciário) e acabavam se tornando vítimas da própria persecução penal, tendo que relatar os fatos e revivendo-os por diversas vezes para contas as experiências já traumáticas pelas quais passaram.

A referida lei, surgiu com o intuito de potencializar o sistema de garantias de crianças e adolescentes e evitar revitimização daqueles que já tiveram seus direitos violados. Para tanto, além de outras previsões, foram criados os instrumentos da escuta especializada e do depoimento especial.

A escuta especializada se conceitua como uma entrevista sobre a situação vivida pela vítima, visando à colheita de informações básicas para posteriores encaminhamentos, sem se aprofundar nos questionamentos. Pode ser feita perante quaisquer dos órgãos de proteção.

Já o depoimento especial pode ser realizando perante a autoridade policial ou judiciária e visa à obtenção de elementos probatórios e a busca da veracidade dos fatos.

O importante, independente do instrumento utilizado, é que não se viole mais uma vez os direitos das vítimas e que se perpetue o sofrimento e trauma já causados pela violência suportada.

Daí a extrema necessidade de que todos os profissionais integrantes da rede apoio e proteção das crianças e adolescentes tenham conhecimento das orientações para a adequada oitiva da vítima, a fim de garantir que sejam tratados com o devido respeito como sujeitos de direito que o são e não simples instrumentos de provas para a persecução criminal.

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