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Lei 14.022/2020 sob a ótica de uma Delegada de Polícia

14 de julho de 2020

No dia 08/07/2020 entrou em vigor a Lei 14.022/2020 que traz medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. 

Tal lei foi editada tendo em vista o crescente número de casos envolvendo violência doméstica e familiar durante o período de “isolamento social”.

As causas desse aumento são inúmeras e devem ser objeto de estudo das mais variadas áreas, incluindo não somente o Direito Penal, a área de Segurança Pública, políticas criminais, mas também e primordialmente, um estudo sociológico para tentar entender a origem dessa violência.

Fugindo um pouco da área do direito, sabe-se que relacionamentos não saudáveis são fadados ao insucesso, porém, tal fim pode ter sido antecipado em razão da forçada convivência imposta pelas medidas restritivas que visam a evitar a propagação do vírus COVID-19.

Essa convivência forçada pode ter sido a causa do aumento da violência e é patente a necessidade de que seja combatido. No entanto, não pode o Poder Legislativo, como sói acontecer, de maneira assoberbada, ceder à pressão midiática e editar lei que não possa ter efetivo cumprimento.

Isto porque, a lei 14022/2020 traz diversas medidas que impõem obrigações ao poder público, porém não trouxe maneiras para implementá-las.

Passemos então a analisar as principais medidas e suas consequências práticas, em especial na área da segurança pública no âmbito da polícia civil.

A lei 14022/2020 faz significativas alterações em dispositivos da Lei13979/2020, a qual dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

Passaram a ser considerados essenciais os serviços e atividades voltados a atender mulheres em situação de violência doméstica e familiar, a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência vítimas de crimes tipificados na Lei 11340/06 (Lei Maria da Penha), na Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente), na Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), na Lei 13146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e no Código Penal.

Há previsão da possibilidade de que o registro da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher e de crimes cometidos contra criança, adolescente, pessoa idosa ou pessoa com deficiência seja realizado por meio eletrônico ou por meio de número de telefone de emergência. Em alguns estados, como é o caso do Paraná, já foi implementado o “boletim de ocorrência online”, porém para a solicitação, por exemplo, de medidas protetivas de urgência, a vítima deve comparecer à Delegacia para sua formalização e posterior encaminhamento do pedido ao Poder Judiciário.

O atendimento remoto por meio eletrônico não exclui o atendimento presencial, conforme previsto no Art. 3º da lei em apreço.

Caso, por razões de segurança sanitária, não seja possível a manutenção do atendimento presencial a todas as demandas envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, contra idosos, crianças ou adolescentes, obrigatoriamente será garantido o atendimento presencial para situações em que possam envolver os seguintes ilícitos penais elencados:

I – no Código Penal, na modalidade consumada ou tentada:

a) feminicídio, disposto no inciso VI do § 2º do art. 121;

b) lesão corporal de natureza grave, disposto no § 1º do art. 129;

c) lesão corporal dolosa de natureza gravíssima, disposto no § 2º do art. 129;

d) lesão corporal seguida de morte, disposto no § 3º do art. 129;

e) ameaça praticada com uso de arma de fogo, disposto no art. 147;

f) estupro, disposto no art. 213;

g) estupro de vulnerável, disposto no caput e nos §§ 1º, 2º, 3º e 4º do art. 217-A;

h) corrupção de menores, disposto no art. 218;

i) satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, disposto no art. 218-A;

II – na Lei Maria da Penha, o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, disposto no art. 24-A;

III – no Estatuto da Criança e do Adolescente;

IV – no Estatuto do Idoso.

Um dos pontos-chave da alteração legislativa é o §2º do Art. 4º que prevê o pedido de medidas protetivas remotamente por meio eletrônico (atendimento online, nas palavras da lei).

A implementação logística dessa medida exige não apenas recursos financeiros, mas também recursos humanos. Estaria o poder público preparado para efetivá-la? E mais, se o fizer, o fará em tempo hábil a garantir sua efetividade até o final do estado de emergência a que se refere a lei? Ou temos mais uma lei que já nasceu morta? É um ponto relevante a se pensar.

No mesmo artigo, em seu parágrafo 3º há a previsão da concessão das medidas protetivas de urgência previstas nos Arts. 12-B, 12-C, 22,23 e 24 da Lei 11340/06, de forma eletrônica, podendo considerar “provas” coletadas eletronicamente ou por audiovisual, em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e colheita de provas que exija a presença física da ofendida.

Além da flagrante atecnicidade da expressão “provas coletadas eletronicamente ou por audiovisual”, uma vez que jamais poder-se-ia considerar “prova” elemento produzido por uma das partes e que não tenha passado pelo crivo do contraditório. Temos outro entrave, é dada total credibilidade a tal elemento probatório, produzido por uma das partes, se que qualquer ente estatal faça prévia análise.

Ora, é cediço que nos casos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, a palavra da vítima adota especial importância, vez que via de regra tais crimes são cometidos na clandestinidade, sem a presença de qualquer testemunha. Entretanto, tal afirmativa não é absoluta e deve se coadunar com os demais elementos probatórios colhidos. 

Não se está aqui dizendo que a palavra da vítima não bastaria para a concessão de medidas protetivas de urgência, até mesmo por seu caráter emergencial, o que não se pode admitir é que uma das partes (a vítima) por si só, de maneira remota e eletrônica, produza elementos que atingirão direitos fundamentais de outra parte.

Para tanto, há a necessidade de atuação de um profissional de carreira jurídica. Até para que uma vítima, um pouco desinformada, não se engane achando que a mera confecção de registro eletrônico e pedido de medidas protetivas já seja método apto a garantir sua segurança.

Há necessidade de informação prestada por profissionais da área de segurança pública e por autoridade  integrante de carreira jurídica do estado para que a vítima entenda de seus direitos garantidos pela Lei Maria da Penha.

Superado esse ponto, há que se falar sobre a autoridade competente para a concessão das medidas protetivas solicitadas eletronicamente. Isto porque, o §4º do artigo em análise prevê que após a concessão da medida de urgência, a autoridade competente deverá:

I – se for autoridade judicial, comunicar à unidade de polícia judiciária competente para que proceda à abertura de investigação criminal para apuração dos fatos;

II – se for delegado de polícia, comunicar imediatamente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário da medida concedida e instaurar imediatamente inquérito policial, determinando todas as diligências cabíveis para a averiguação dos fatos;

III – se for policial, comunicar imediatamente ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e à unidade de polícia judiciária competente da medida concedida, realizar o registro de boletim de ocorrência e encaminhar os autos imediatamente à autoridade policial competente para a adoção das medidas cabíveis.

Quando tal parágrafo menciona o Delegado de Polícia e o policial está se referindo a todas as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha ou apenas àquelas previstas na Lei 13827/19?

O dispositivo legal não faz disitinção entre as autoridades e as medidas de urgência, assim, entende-se que a Lei 14022/2020 deu à Autoridade Policial (personificado na figura do Delegado de Polícia) e ao policial a atribuição de concessão de todas as medidas protetivas previstas na Lei 11340/06, não se limitando às hipóteses previstas na Lei 13827/19.

Com relação à concessão pela Autoridade Policial, não há objeção, vez que se trata de servidor integrante dos quadros de carreira jurídica do estado e que teria aptidão técnica e jurídica para tal decisão. 

O que causa espécie, é a concessão feita pelo policial não integrante de carreira jurídica. Como designar uma atribuição a pessoa que não tem formação técnica jurídica para apreciar pedido que verse sobre limitações a direitos e garantias individuais? É no mínimo estranho, para não se falar em flagrante inconstitucionalidade do dispositivo.

Superado mais esse ponto, há que se analisar a determinação de que seja imediatamente instaurado inquérito policial após a concessão das medidas protetivas. Tal dispositivo deve ser analisado por partes.

Inicialmente não há que se falar em obrigatoriedade de instauração de inquérito policial por parte do Delegado de Polícia que goza de independência funcional e deve fazer análise jurídica dos fatos e, caso entenda que se trata de fato típico e antijurídico, instaurar o caderno apuratório.

De outro turno, o dispositivo traz a expressão “independentemente de autorização da ofendida”, esquecendo-se dos crimes que se procedem mediante representação da vítima ou mediante queixa. Teria a lei em estudo tornado todos os crimes ocorridos em situação de violência doméstica e familiar em crimes de ação penal pública incondicionada? Mais uma vez vê-se a falta de técnica do legislador pátrio.

Não se pode esquecer, ainda, dos casos em que a mulher solicita as medidas protetivas sem que tenha ocorrido um crime. É sabido que a Lei Maria da Penha protege a mulher de todos os tipos de violência, ainda que não configuram um tipo penal.

Ainda nesses casos, estaria a autoridade policial obrigada a instaurar inquérito policial para apurar um fato atípico? Cremos que não. Não há sentido em se mover a máquina pública para a instauração de procedimento investigatório que não levará a fim algum. Temos flagrante violação a princípios constitucionais que regem a administração pública, em especial ao princípio da eficiência.

Por fim, cabe ressaltar que a violência doméstica e familiar contra a mulher, a violência contra idosos, crianças e adolescentes e pessoas portadoras de deficiência, devem, sim, ser combatidas, porém, sempre com mecanismos amparados em  lei que não violem princípios e garantias constitucionais e que não sejam fruto de elaboração legislativa midiática, sob pena de se criar lei natimorta.

Do Canal Ciências Criminais.

Por: Delegada Fernanda Lima Moretzsohn De Mello

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